Mude o mundo

02/04/2011

Início do capítulo 7 de " Noites de lobisomem" - Cortesia aos seguidores


            Óbvio que não havia lógica naquilo. Mas eram mais de três da manhã numa terça feira de agosto. Da janela de casa eu via as luzes de Satolep ofuscadas por uma névoa que deixava os paralelepípedos bem cortados do velho centro da cidade tão molhados como se chovesse.
Eu ia sair. E não ia ser uma caminhada bípede, se é que me entendem. Por trás daquelas nuvens carregadas, era lua cheia. Não que ela me obrigasse a nada. Não que ela me obrigasse a “mudar”. Mas não nascem mais bebês na lua cheia ? Pois é. Não se sabe bem porque. Mas nascem. Também prefiro noites de lua cheia. Gosto de pensar que é alguma coisa romântica. Bom, pelo menos ter alguma coisa romântica em ser um monstro seria bacana.


 Saí do meu prédio caminhando normalmente pela porta da frente, em direção a uma obra abandonada algumas quadras abaixo. A noite realmente era terrível. Fria, úmida, bem gaúcha. A condição ideal ( se é que existia uma ) para um “passeio” no centro de uma cidade de quatrocentos mil habitantes. Pulei o muro da velha casa sem muita dificuldade para fazer o improvável numa noite com três graus de temperatura. Ficar nu.
Pois é. Queria que fosse nos filmes, onde as roupas somem automaticamente em metamorfoses de homens-mosca ou incríveis Hulk. Mas as leis da física se aplicam também aos “garous”. Ou você fica pelado ou a calça jeans vai apertar teu saco de lobo e acreditem, é bem difícil tirar uma calça jeans sem polegares opositores pra ajudar. E as unhas não ajudam em nada!
Estou ficando cada vez melhor nisso. O que antes era um tormento de quinze minutos muito dolorido e apavorante, agora demora um terço disso e quase sem dor. Sai de cena o pós-adolescente desengonçado e surge o lobo, ainda também desengonçado. Mas vou melhorar.
Os cheiros da cidade já invadem a minha cabeça. Meu nariz inoperante de gente agora era um focinho e algumas centenas de vezes mais sensíveis. O cheiro podre no lugar era algo. Devia ter de tudo ali. Fui identificando cheiro por cheiro. Animais mortos desovados ( provavelmente um gato), lixo apodrecendo, urina e fezes de toda espécie e..putz. Gente. Cheiro de gente!!
Meu coração disparou imediatamente e senti os pelos do meu dorso se ouriçarem. Havia gente ali? Que burrada eu fiz!
Respirei fundo para identificar a direção. Uma cautelosa olhada panorâmica no ambiente da casa em ruínas e não vejo nada. Mas é fácil seguir o cheiro. Me esgueiro um pouco entre o capim crescido onde antes devia ser a sala da frente e a origem do cheiro surge. Um homem dorme enrolado em papelão. Um mendigo. A julgar pelo cheiro de cachaça que pairava no ar cada vez que ele respirava e roncava, se acordasse e me visse, me chamaria de Totó ou algo assim. Pulei o muro sem dificuldade.


Estava na calçada. Agora era sem volta. A cidade estava realmente deserta e me parecia que não seria impossível me esconder nas sobras e dar uma “volta”, digamos. A não ser que me vissem muito de perto, de longe eu poderia passar por um Husky bem grande. De oitenta quilos é verdade, mas.. A gente se engana bastante quando quer se convencer de algo.
Evitei um ponto de táxi na esquina e peguei uma rua menor e mais escura. Alguns carros estacionados, mas nem sinal de gente. Vi o prédio do antigo Mercado e a Prefeitura , iluminados e arrisquei passar entre eles até chegar a praça central. Rota bem arriscada. Não havia obstáculos, bancos ou árvores no largo do mercado. Se passasse um carro ali naquela hora, eu seria visto. Só me restaria baixar as orelhas e me fazer de morto. O tal Husky aquele..Só quer morto.
Mas cheguei ao destino sem muitos percalços. Pra minha boa sorte, com a última reforma, a maioria das luzes centrais da praça se apagava depois da meia noite. A penumbra da nossa “ cerração” criava a paisagem ideal para o trajeto. Não havia nem prostitutas , nem bêbados, nem ninguém da “fauna” habitual das praças urbanas. Me sentei um pouco junto a um trecho não alcançado pela luz do poste distante e fiquei contemplando a velha e linda Satolep e seus casarões numerados.
Passos.
Um salto alto. Ergui o pescoço e provei o ar da madrugada. Uma mulher. Jovem. Um perfume caro. Passos não muito firmes na verdade. Inexatos. Talvez bêbada. Ia passar ao longe, quando do nada dobrou em minha direção. Mudou o caminho. Tarde demais pra me mover. Fique exatamente como estava e torci pra que a escuridão da praça e a embriaguez da moça não me revelassem.
Passou por mim semi-cambaleante. Maquiada, produzida, bêbada. Muito provavelmente vinha de alguma balada ou bar. Ah, e além de maquiada, produzida e bêbada, maluca é claro. Quem atravessaria aquela praça as três e meia da manhã? Mas como eu sempre digo : Enfim...
Mais passos! Como assim? Não existe mais medo de assalto e violência urbana? Todo mundo cruza a praça de madrugada? Bom , ao menos agora eu já tinha me recolhido junto perto de umas hortênsias e estava bem escondido.
Homem. Meia idade. Mal encarado.
Um canivete na mão....
Ele ia uns vinte metros atrás da moça. Mas ia mais rápido que ela. Calculei que chegaria nela exatamente no meio da praça, onde era mais escuro e mais deserto ainda.
Me lembrei dos filmes americanos : “Assalto em andamento!” Ou coisa pior...
Não sabendo exatamente o que eu ia fazer, fui acompanhando a cena, me esgueirando entre bancos e árvores. Passo a passo com o “elemento”...
Exatamente como eu previa, no meio da praça, em frente ao velho chafariz francês, o bote:


-A bolsa, me dá a bolsa – quase sussurrou o sujeito, enquanto pegava a mulher pela cintura e mostrava o canivete na outra.


Ela não esboçou reação. Ao perceber o que acontecia, estendeu a bolsa, que foi arrancada da mão com um forte puxão. O sujeito ficou parado por alguns segundos observando, talvez ainda surpreso pela falta de reação ou ao menos de um grito por parte da sua vítima. Ela virou, agora assustada e saiu caminhando dessa vez a passos firmes e rápidos. A descarga de adrenalina da situação tinha feito a bebedeira quase sumir. Parecia que ela ia embora normalmente. Um assalto tranquilo , eu diria.
Mas ele mudou de ideia. Infelizmente.
Correu a direção dela e com uma gravata começou a puxá-la em direção aos banheiros:


-Vem aqui gostosa, e não reage que eu te mato, vadia..


Aí complicou. Um velho e bom assalto, tudo bem. Era até bom pra moça aprender que bebida e voltar pra casa sozinha não combinam. Mas o que estava pra acontecer ..
Não aconteceria comigo ali.
Até então eu nunca tinha confrontado uma pessoa de frente. Não tinha nenhuma noção do que eu ia fazer. Então apenas me levantei e andei em direção a eles. O cara tinha dificuldades pra fazer a moça entrar no banheiro, ela resistia bravamente.
Saí da escuridão. Meu sangue gelou, confesso.
As patas da frente cravaram no chão. Minha cabeça baixou, formando uma linha reta com o tronco. Minhas narinas dilataram e o ar quente da minha boca encheu a madrugada. Senti meu tronco se elevando. Minha gengiva se abriu lentamente, mostrando o que com certeza o que não devia ser uma cena meiga. A boca de um lobisomem prontinha pro “jogo”.
No rosto de ambos, assaltante e assaltada, a incredibilidade.
Foi bem mais fácil do que eu pensava. O sujeito largou o canivete na grama e saiu em desabalada carreira. Dica: Nunca corra na frente de um lobo. Ou ele vai achar que você é comida ou que está de brincadeira. Em ambos os casos, pode ser digamos, perigoso. Vontade até que deu de ir atrás. Mas a moça já estava a salvo.
Deixa o cara. Vai demorar pra “trabalhar” por ali de novo.
Mas agora eu tinha outro problema: Uma guria com a maquiagem borrada, parada na porta do banheiro feminino da praça me olhando com uma cara de “ Como assim um husky desse tamanho?”
Ficamos nos fitando alguns momentos e então dei uns passos pra trás. Na verdade era algo tipo “ Pode passar, não vou te morder”. Pelo menos era o que eu queria que ela entendesse. Ela juntou a bolsa do chão e entendeu. Sempre me olhando, foi ganhando o corredor da praça e se afastando. Tentei fazer uma cara amistosa, sei lá. Acho que não consegui.
Quando ela estava longe, comecei a acompanhá-la de longe. Via ao fundo sua silhueta, mas vi bem quando abriu a porta do prédio onde morava. Olhou pra trás. Me deixei ver, ao fundo, quase na esquina, observando. Me viu. Fechou a porta apressada e sumiu.
Era meu sinal pra voltar pra casa. Já estava muito bom por aquela noite. E depois das quatro a cidade começaria a acordar. Pelo menos fiz uma boa ação. Voltei contente, me lembro bem.
Mais tarde já em casa deitado e custando pra dormir, pensava naquele meu primeiro contato “lupino” com a civilização. A partir dali correr nos campos e nas florestas de eucalipto não foi mais suficiente. A madrugada de Satolep tinha um novo frequentador...

3 comentários:

Anônimo disse...

Extremamente envolvente a história. Certamente o livro também será.

Anônimo disse...

As Julietas ainda existem sim e Romeus aaa e os Romeus...Existem sim mas dependem das Julietas, ninguém tem coragem de ser quem realmente é, pois nosso mundo já não permitem mais. Não temos mais tempo para sermos românticos, queremos receber mas esquecemos de dar. Eu nuncaa, serei uma eterna Julieta, na busca eterna do meu Romeu!

Cinara disse...

Passado algum tempo, muito tempo, encontrei seu blog. Fiquei horas lendo. Parabéns pelo dom da palavra. Beijos, Ci.