Mude o mundo

18/07/2010

O fog da alma

O frio chegou em Satolep. E quando chega o frio aqui, é de verdade.

Nossa Londres. Segunda cidade mais úmida de todo planeta terra. A fama de reduto dos “ delicados” se prova mais injusta nessa época do ano. Tem que ser muito macho pra sobreviver ao inverno nesse paralelo aqui.

O inverno tem muitas coisas boas. Eu particularmente prezo muito a possibilidade das quatro estações. Verões porto alegrenses escaldantes, primaveras coloridas, outonos cinzentos e invernos gélidos. Nós gaúchos somos previlegiados. Imagina os brasileiros por exemplo. Sempre calor. O que difere é se chove ou não chove. Não. Meio monótono. Prefiro aqui.

Saí para dar aula e estava uma noite muito fria. Recém tinha chegado de Porto e estava cansado. Tirei o terno, meti casacão de neve comprado em Chamonix, cuecão por baixo da calça, toquinha de bandido e “vambora pra facul”. Saí de lá umas nove da noite, morto de fome. O lanchinho da sala dos “profs” não deu nem pra largada...Na saída, lembrei que lá na mãe no inverno sempre tem sopa de noite. Então resolvi evitar a tradicional “ pizza-porra-nao-tem-nada-na-minha-geladeira” e filar a sopa da casa dos pais.

E “tava” bom “ Daquelas que tem carne , milho e tudo mais. Um dos espetáculos do inverno. Sopão gaúcho!

Na saída, ainda resolvi levar mais um pouco pra casa. Sabe como é, a ceia antes de dormir..mais sopinha.

Vinha no carro e admirando as ruas vazias e geladas de Satolep. Só poucos canos de carro esfumaçantes e um ou outro rabo de manta passando apressado pra casa.. O invernão chegou. E com força. Mas como eu sempre digo, por trás de dias comuns e noites tranquilas, sempre tem uma história. A gente só tem que enxergar...

Quando eu chegava em casa, parei na frente da garagem como sempre e buzinei para o segurança abrir o portão. Eram umas dez e pouco da noite..Ele demorou um pouco pra abrir e reparei numa menina sentada ao lado do portão da garagem..Pelas roupas uma menina de rua ou ao menos, bem humilde, numa primeira e superficial análise..e percebi que ela chorava..e bastante...Confesso que mais por ato reflexo do que propriamente por saber o que fazia, abri a porta do carro e fui até ela:


-Tu tá bem? - Perguntei o padrão.

-Eu não tenho nada, eu não sou nada, sabia ?

Foi a resposta dela para minha surpresa. Eu esperava algo como “ alguém me fez algo ou estou com fome..

Mas o que veio foi bem mais profundo. Nestas alturas prestei mais atenção na menina. Pele clara, cabelos louros mal cuidados, uns 18 ou 19 anos no máximo. Rosto cansado, mas belo, por trás da dureza daquela vida.

Insistindo , perguntei :

-Tu tá te sentindo bem ?

Ela balbuciou de novo:

-Eu não sou nada...

O que dizer numa situação dessas? Parado ali naquele frio, eu olhava para ela e ela olhava para o nada. Oferecer dinheiro? Comida? O que para aquela moça que “não era nada?”

Ela carregava na face um olhar de desespero que eu nunca tinha visto num ser humano. Até porque provavelmente nunca olhei uma pessoa como ela de perto.

Peguei dez reais da carteira e perguntei :

- Te ajuda ?

Ela pegou da minha mão e amassou, como se guardasse o dinheiro dentro da mão. Agradeceu, olhando para baixo.

Me lembrei da sopa que eu trazia no carro :

-Tu quer sopa ?

Ela não esboçou reação alguma.

-Então espera aí que eu vou esquentar ali em cima e já te trago – disse eu.

Voltei dei a sopa para ela e subi.

Lá da minha janela do 11º, minha torre do castelo, eu observava ela sentada ali acabando de comer. Vi que terminou e ela sumiu um pouco no hall do meu prédio. Descobri depois que era pra devolver o prato e a colher, que o segurança veio me entregar.

Vi ela se afastando com um passo muito devagar. Passo de quem não te certeza alguma para onde vai. A Caminhada dos Incertos.

Fiquei na janela olhando a noite por um tempo e pensando naquelas palavras e no que eu poderia ter dito a ela.. Um consolo, uma esperança enfim..

É, mocinha loura do prato de sopa.. Se tu não tens nada e não és nada..Agora nesse momento não me sinto muito diferente de ti.. Porque te olhando aqui de cima indo embora como chegou, posso te dizer..Nesta noite eu tenho tudo, mas não SOU nada.

Porque no final, eu alimentei o corpo e dei dinheiro..Mas alma dela saiu da porta do meu prédio como chegou. Sem ter e bem pior... sem SER..

Jacques



London dos pampas, inverno blue, 2010

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