Mude o mundo

05/03/2009

Eu e o lobisomem


É inevitável a pergunta, (dos que me conhecem ou ao menos lêem esse humilde blog) “Por que essa tua coisa com Lobos” ? Normalmente, e mais por preguiça do que qualquer outra coisa, sou bem evasivo e respondo : “ Gosto do bicho!” . E pensando bem , talvez exista o fato também de que, como sendo uma simpatia pessoal, uma peculiaridade minha, explicar isso seria de pouca utilidade na compreensão das pessoas.
Mas vamos lá : Comecei a escrever aos 14 anos, num bloquinho que minha mãe me deu. Aos 18, incentivado pela minha primeira namorada, comprei uma Olivetti Lettera (máquina de escrever, lembram?) e parti para os textos em folhas de ofício, que depois eram cuidadosamente agrupados pela minha “primeira-primeira-dama” em uma pastinha de plástico. Daí, essa pastinha tinha uma capa.
E uma capa precisa de um título.
E o título foi “Noites de lobisomem” , uma das minhas primeiras crônicas, que tratava da minhas aventuras na “night”.
Mas porque também, quando eu tinha nove anos, vivi uma estranha história, que vou relatar a vocês.
Ah, o início do livro que tento escrever é inspiradíssimo nesse fato.

Os mais próximos a mim já ouviram essa história , com certeza.

Boa viagem!

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“ Era uma noite fria, pelo que lembro, e se não me lembro de tudo, a culpa é dos parcos nove anos que eu tinha nessa noite. Era um sábado, de um julho típico campeiro, de um vento frio e seco, cortante, que gelava as orelhas que sobravam perdidas da boina. Eu estava pra fora, quase interior do Arroio Grande, ali pros lados do Parque Agrícola ( Sim, claro, imagino que, quiçá saibam onde fica o Arroio Grande, quanto mais o Parque Agrícola do Arroio Grande.. Mas enfim) na casa de um primo-emprestado (primo de um primo, não sei como se denomina essa relação ). Na dita noite fria, havia um baile no salão local, que obviamente , não nos era foco, dada nossa idade. Mas nada nos impedia de ir dar uma “olhada no movimento” como se dizia por lá:

-Tia, a gente vai ali no salão do Garrucha dar uma espiada no baile, tá bem? - perguntei.
-Mas bem capaz ! Nessa noite fria ? Vão fazer o que lá? Cuidar os cavalos ? Depois “tu me pega” uma gripe e como te devolvo pra tua mãe ? E esse outro aí fica me incomodando a noite toda tossindo (Esse outro era o filho dela, o Primo!
-Ah tia, deixa, os cavalos estão encilhados ainda!! Depois na volta a gente põe eles na cocheira e arruma tudo..por favorrrrr! -insisti

Dada a choradeira iminente, a tia autorizou :
-Tudo bem. Mas no máximo às dez horas quero os dois de volta ! E vão pelo campo , “costiando” a cerca, porque essa estrada tá um perigo, estes autos passam voando!!! Ah e levem os cachorros!!!- disse a zelosa tia.
-Ah, não tia, pra que cachorro ? A gente vai chegar lá com essa cachorrada, todo mundo vai nos olhar !! – protestei.
-Os cachorros sim. De noite é sempre bom, o cachorro com o tropeiro! disse a tia decidida .
-Tá bemmmmmm!!!! – concordei, conformado.

Na mangueira ao lado da casa, onde estavam os cavalos, o Primo assoviou e a cachorrada “se veio”. Liderados pelo “Hulk “ ( O bicho era mesmo muito grande, só não era verde!) A matilha se pôs latindo aos pés dos cavalos, felizes pelo passeio noturno que iam fazer.:

-Cala a boca, “fia-da-puta”, disse o Primo.

Era a senha pros cuscos pararem a barulheira. E cachorro de campanha é obediente, até porque é criado no laço. O silêncio se fez.

E nos fomos. Faceiros e bem montados, poncho sobre os lombos dos cavalos, saímos a passo. A noite estava clara, mas convinha ir devagar, porque a gente era pequeno e os bichos grandes. E a noite, um cavalo assustado com uma Cruzeira, dava uma disparada ruinzita de controlar.
Era perto, uns quatro quilômetros da sede ( casa) , imagino eu.
A noite era muito clara e apesar do frio, me lembro de ter pensado como estava bonita e estrelada e que o reflexo da lua no campo em movimento pelo vento, deixava ainda mais peculiar e acolhedor aquele cenário.
Íamos já pela metade do caminho , subimos e descemos uma pequena coxilha, o que nos tirava já da visão da casa e nos indicava, bem ao longe, nosso destino iluminado..

Os cavalos pararam.

Percebi meu poncho, antes inquieto, maltratado pelo vento e pelo trote, repousar sereno no lombo do Preto, meu companheiro de jornada.
Vamô Preto ! Toca, matungo! Que foi , tchê ! Vamô ! – esbravejei.

Mas o Preto tinha cravado suas duas patas dianteiras musculosas no chão e visivelmente incomodado, bufava e virava o pescoço, como se pedisse o comando de retorno na rédea.
Ao meu lado, o Primo também estava empacado. O zaino Astro, que ele montava, também estava inclinado pra trás e não dava sinal de obedecer o cutucão do adiante.
Os cachorros, liderados pelo enfurecido e destemido Hulk, latiam desesperados e angustiados. Os menores se entrelaçavam entre as pernas das montarias, deixando os cavalos ainda mais nervoso. Só o Hulk, postado entre nós dois, parecia firme nos latidos.

O vento parou.

E aí foi nossa vez. Depois dos cavalos e cães, nós os destemidos cavaleiros da noite campeira, nos assustamos :
-Jaquinho, Jaquinho..que passa? - disse o Primo, com seu sotaque acastelhanado de fronteira.
-Não sei. Mas se nem o vento gostou, boa coisa não é. - respondi.
-Primo....mas o que é isso...??? - perguntei
-Nunca vi um cachorro desse tamanho. Maior que Hulk – Respondeu atônito o Primo.

Uns vinte metros cruzava a nossa frente, os olhos fixos na gente, aquilo que lembrava um lobo e dos bem grandes. Iluminado pela lua, ia lentamente na pequena estrada interna da fazenda.
Me lembro bem do silêncio dos cachorros, dos cavalos e da gente mesmo.

Hulk então rosnou, pude ver os pêlos do seu dorso se levantarem, no clássico truque da natureza que faz os animais parecerem maiores.

O bicho então parou. Pude ver melhor.
Olhos amarelos. Forte. Se virou e olhou panoramicamente, como se analisasse algo. Uns três segundos que pareceram três horas. (Anos depois, pensado na cena, percebi que naqueles três segundos, ele estava decidindo se aquela era uma batalha possível. Duas pessoas, dois cavalos fortes, dez cachorros, cinco deles muito grandes.) E ele, seja lá o que fosse, decidiu que não valia a pena.
Partiu veloz, buscando a noite.

Hulk me olhou como um raio, já babando, como que implorando a autorização para sair atrás. Muito mais no instinto que qualquer outra coisa, dei a ordem :
-Vai!
E a matilha raivosa saiu em perseguição noite a dentro.
Nisso, o Primo me olhou e disse, mais que ligeiro :
-De volta, de volta!
Viramos os animais numa rapidez impressionante e literalmente cravamos os calcanhares. Os cavalos se alinharam lado a lado pela estradinha e partiram num galope que eu jamais voltei a sentir na minha vida. Me acomodei como pude, grudei minhas canelas e tentei me ajeitar. Um tombo naquele momento era tudo que eu não queria. O ar quente das narinas dilatadas de Preto jorrava na noite fria, como uma chaleira de galpão.

O instinto. O medo. O maior motor de impulso de um ser vivo.

Chegamos na fazenda esbaforidos, em alto galope, coisa que fez com que o Tio , a Tia e dois peões que mateavam na cozinha saíssem rapidamente para ver o que se passava. Eu estava justamente pensando no que dizer, quando o Primo desceu do cavalo e começou a gritar :
-Lobisomem ! Lobisomem!

Até então eu não tinha pensado nisso. Como assim Lobisomem? Mas realmente, na minha cabeça de criança, parecia ser uma boa explicação.

Mandaram dois peões atrás dos cachorros. Metade dos cães voltou machucada e o Hulk, MUITO machucado. Aparentemente não ia sobreviver.

Varamos a noite tentando explicar o que vimos. O tio e a tia se dividiam entre a incredulidade e as lendas que ouviram. No dia seguinte a história já rondava a cidade e já nos chamavam de “guris do lobisomem”.

Duas noites depois, sem sono e ainda pensando em tudo aquilo, no quarto da fazenda, eu ouvia os cães uivando lá fora, talvez sentindo falta do Hulk, que dormia no nosso quarto até se curar das feridas e para não se meter em novas aventuras, momentaneamente. Um uivo ao longe nos assustou, a mim e ao Hulk.
Diferente. Medonho.
Hulk se aninhou ao pé de nossas camas e rosnou temeroso. O primo dormia. Os uivos cessaram logo e eu adormeci.

Pra mim, aquilo andava lá fora. Seja lá o que fosse.

Com a adolescência chegando, foi ficando claro pra mim que não existiam lobisomens. Assim como Papai Noel e Saci. Não gostei disso. Era tão bom acreditar em lobisomens e muito melhor, era tão bom ter visto um..
Com certeza quando eu tiver um filho e ele for moleque, vou levá-lo naquela coxilha e contar sem medo :
“Aqui teu pai viu um lobisomem !!”
Os olhos dele vão brilhar e as fantasias da vida tomarão conta da cabeça inocente de criança.

Bom , você leu tudo e não acreditou em uma única palavra? Tudo bem. Muitos não acreditam.
Mas meu lobisomem ainda anda lá fora.
Quer dizer...

Lá fora eu não sei.

Mas aqui dentro ele vive. Graças a Deus.

Jacques, verão 2009





Um comentário:

Maria José Goulart disse...

Jacques,

A pedido do meu filho(9 anos) que queria que eu contasse uma estória bem horripilante para ele dormir, sai a pesquisar na internet e me deparei com a tua maravilhosa estória "eu e o lobisomem".
Sou da fronteira, Alegrete e também ouvi muita estória de lobisomem... Meu filho Lorenzo, adorou a tua!!!!
Muito obrigada, pela riqueza da tua estória!
Grande abraço, Zezé - zezedoula@gmail.com