
Um amigo meu diz sempre que todos tem muitas histórias para contar. Segundo ele, eu presto atenção nas minhas e consigo descrever. Pode ser. Afinal, se eu não prestar atenção nelas, como vou contá-las ? Aí vai mais uma.
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Como ao nascermos somos mais um entre quatro bilhões de seres humanos, me parece natural e compreensível que sejamos invisíveis à maioria esmagadora desses seres. Um grão de areia. Uma pequena unidade de vida humana, que se não nascesse ali, não mudaria muito a rotina na nossa mãe-azul. Na china por exemplo, quando eu e você nascemos , os chineses continuaram todos puxando seus riquixás e “ shitting and walking” se é que existe essa expressão por lá.
O fato é que nascemos assim, talvez até por benevolência divina, para nos proteger. Deixamos de ser invisíveis pelos nossos atos e escolhas. Mas a verdade é que a grande maioria de nós é invisível ao mundo a vida toda.
Eu estava no Rio de Janeiro, era novembro de 2002, Encontro Nacional de Comércio Exterior, no Hotel Glória. Grande evento nacional, até porque estávamos a uns dias do segundo turno da eleição presidencial e os dois então candidatos a presidência, Lula e José Serra, falariam no evento e se hospedariam no hotel na véspera do debate final da TV Globo.
No dia que cheguei ao hotel, tive problemas com minha reserva. Como estava em cima da hora para um dos primeiros eventos do Encontro, um funcionário da recepção me disse que resolveria o problema para mim. Agradeci e fui ao evento. Final da tarde quando retornei para pegar a chave do quarto, tudo já estava resolvido pelo recepcionista. Agradeci e subi ao meu quarto.
Primeira noite no Rio, todo mundo querendo sair. Como eu já tinha morado lá, coube a mim indicar o lugar. Tudo bem. Vamos num boteco bacana no Leme. Se é que ainda existia, pensei.
Existia.
Lá sentados e saboreando um chopp olhando o belo visual daquele cantinho de Copacabana, um rapaz veio até a mesa e nos cumprimentou. Todos retribuímos, meio sem saber quem era. Ele imediatamente percebeu e nos lembrou:
- Sou do hotel Glória. Fiz o check in de vocês hoje.
Ninguém mesmo tinha reconhecido ele. Mas ele não se importou. E disse essa frase :
-Tudo bem. A gente fica meio invisível de uniforme.
Fiquei imediatamente pensando naquilo. Não era só por causa do uniforme. Era todo o contexto. A gente tende a não reparar em pessoas que “nos servem”. Não olhamos muitas vezes nem nos olhos delas. Mas enfim.. passou o pensamento e fui beber meu chopp.
No dia seguinte, a noite, haveria um grande coquetel no hotel para comemorar o Encontro. Tive que dar uma saída ao final da tarde e voltei correndo, já no meio da noite, para ver se dava tempo de colocar um terno e ainda participar de parte do evento. Embora o ambiente estivesse tumultuadíssimo por causa das ilustres presenças no hotel, desci na recepção vazia, já que aquela hora , todos estavam nos salões do hotel. Estava pegando minha chave, quando irrompe pela porta lateral da recepção um homem , com um rádio na mão, dizendo para o pessoal do hotel fechar a porta principal. Logo vi que era policial, pela insígnia no bolso do paletó. Segundos depois, repórteres saindo pela mesma porta, caminhando de costas e tirando muitas fotos. Um tumulto. Do nada.
O policial se dirigiu a mim e disse :
- O senhor tem que sair daqui. Só pessoas autorizadas e jornalistas.
Eu já ia procurando a porta quando e chefe da recepção, contrariado, disse para o policial :
- Ele é hóspede, Só sai se quiser.
O policial fez cara de tudo bem.
Nisso entendi o motivo da bagunça. Aquela porta era uma saída do salão de festas o então candidato Lula estava saindo para o debate da Globo.
E eu ali.
Bom, fui me apertando, e vi uma cadeira bem no canto da sala. Resolvi subir nela para ver o cara e todo o circo armado em volta.
Ele parou então no meio do saguão para dar entrevistas. E eu então me lembrei da invisibilidade. Eu estava ali, invisível, e a história do Brasil acontecendo. Me dei conta que o cara de barba ali estava indo para um debate decisivo e salvo se fizesse uma cagada muito grande, seria o próximo presidente do Brasil. E eu ali. Invisível. Assistindo a história de cima de uma cadeira.
Do nada, nem sei como, respirei fundo, levantei minha mão e gritei :
- Viva Lula. Viva o Brasil.
Todos se viraram e me olharam. Inclusive os agentes da polícia federal, que pareciam não ter gostado nada de ver aquele cara de bermuda em cima de uma cadeira.
Logo chegaram dois, meio truculentos, me mandando descer da cadeira. Meio arrependido do meu grito anti-invisibilidade, desci, imaginando que seria escoltado para fora da sala.
Nisso, percebi que a massa se movimentava em minha direção e do nada, vi aquela cara barbuda a um metro de mim, me estendendo a mão. E agora ?
- Boa sorte para nós.
Foi o que eu disse. Foi o que saiu na hora.
Ele sorriu, bateu no meu ombro e com aquela voz que todos conhecem e muitas imitam me disse:
- Deixa comigo, companheiro.
E se foi quase arrastado pela segurança.
No outro dia, no suplemento de eleições de “O Globo” estava lá minha foto, apertando a mão do cara. E a legenda era : “ Candidato Lula cumprimenta eleitor antes do debate”
Eleitor. Típica expressão de invisibilidade.
Mas eu , vendo a foto, tive certeza que ao menos , na noite anterior, não tinha sido invisível. Por segundos, fiz parte da história. Fui sujeito ativo de um pedacinho muito pedacinho. Mas fui.
Três dias depois, Lula se elegeria Presidente do Brasil.
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Acho que as pessoas nasceram para brilhar. Esse dia me deu esses ensinamentos. Porque o porteiro “ João Ninguém” não quis ser invisível e foi na mesa do bar nos cumprimentar. E eu também me dei um bom exemplo, gritando em cima de uma cadeira. É bom quando a gente mesmo se dá exemplos.
Ah, e pensando bem, o maior exemplo de todos: Um nordestino com 13 irmãos, que fugiu da fome e da invisibilidade e veio ser Presidente do Brasil. Esse pegou pesado quando resolveu não ser invisível.
Paz.
Jacques, primavera (escaldante ) de 2006.
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Como ao nascermos somos mais um entre quatro bilhões de seres humanos, me parece natural e compreensível que sejamos invisíveis à maioria esmagadora desses seres. Um grão de areia. Uma pequena unidade de vida humana, que se não nascesse ali, não mudaria muito a rotina na nossa mãe-azul. Na china por exemplo, quando eu e você nascemos , os chineses continuaram todos puxando seus riquixás e “ shitting and walking” se é que existe essa expressão por lá.
O fato é que nascemos assim, talvez até por benevolência divina, para nos proteger. Deixamos de ser invisíveis pelos nossos atos e escolhas. Mas a verdade é que a grande maioria de nós é invisível ao mundo a vida toda.
Eu estava no Rio de Janeiro, era novembro de 2002, Encontro Nacional de Comércio Exterior, no Hotel Glória. Grande evento nacional, até porque estávamos a uns dias do segundo turno da eleição presidencial e os dois então candidatos a presidência, Lula e José Serra, falariam no evento e se hospedariam no hotel na véspera do debate final da TV Globo.
No dia que cheguei ao hotel, tive problemas com minha reserva. Como estava em cima da hora para um dos primeiros eventos do Encontro, um funcionário da recepção me disse que resolveria o problema para mim. Agradeci e fui ao evento. Final da tarde quando retornei para pegar a chave do quarto, tudo já estava resolvido pelo recepcionista. Agradeci e subi ao meu quarto.
Primeira noite no Rio, todo mundo querendo sair. Como eu já tinha morado lá, coube a mim indicar o lugar. Tudo bem. Vamos num boteco bacana no Leme. Se é que ainda existia, pensei.
Existia.
Lá sentados e saboreando um chopp olhando o belo visual daquele cantinho de Copacabana, um rapaz veio até a mesa e nos cumprimentou. Todos retribuímos, meio sem saber quem era. Ele imediatamente percebeu e nos lembrou:
- Sou do hotel Glória. Fiz o check in de vocês hoje.
Ninguém mesmo tinha reconhecido ele. Mas ele não se importou. E disse essa frase :
-Tudo bem. A gente fica meio invisível de uniforme.
Fiquei imediatamente pensando naquilo. Não era só por causa do uniforme. Era todo o contexto. A gente tende a não reparar em pessoas que “nos servem”. Não olhamos muitas vezes nem nos olhos delas. Mas enfim.. passou o pensamento e fui beber meu chopp.
No dia seguinte, a noite, haveria um grande coquetel no hotel para comemorar o Encontro. Tive que dar uma saída ao final da tarde e voltei correndo, já no meio da noite, para ver se dava tempo de colocar um terno e ainda participar de parte do evento. Embora o ambiente estivesse tumultuadíssimo por causa das ilustres presenças no hotel, desci na recepção vazia, já que aquela hora , todos estavam nos salões do hotel. Estava pegando minha chave, quando irrompe pela porta lateral da recepção um homem , com um rádio na mão, dizendo para o pessoal do hotel fechar a porta principal. Logo vi que era policial, pela insígnia no bolso do paletó. Segundos depois, repórteres saindo pela mesma porta, caminhando de costas e tirando muitas fotos. Um tumulto. Do nada.
O policial se dirigiu a mim e disse :
- O senhor tem que sair daqui. Só pessoas autorizadas e jornalistas.
Eu já ia procurando a porta quando e chefe da recepção, contrariado, disse para o policial :
- Ele é hóspede, Só sai se quiser.
O policial fez cara de tudo bem.
Nisso entendi o motivo da bagunça. Aquela porta era uma saída do salão de festas o então candidato Lula estava saindo para o debate da Globo.
E eu ali.
Bom, fui me apertando, e vi uma cadeira bem no canto da sala. Resolvi subir nela para ver o cara e todo o circo armado em volta.
Ele parou então no meio do saguão para dar entrevistas. E eu então me lembrei da invisibilidade. Eu estava ali, invisível, e a história do Brasil acontecendo. Me dei conta que o cara de barba ali estava indo para um debate decisivo e salvo se fizesse uma cagada muito grande, seria o próximo presidente do Brasil. E eu ali. Invisível. Assistindo a história de cima de uma cadeira.
Do nada, nem sei como, respirei fundo, levantei minha mão e gritei :
- Viva Lula. Viva o Brasil.
Todos se viraram e me olharam. Inclusive os agentes da polícia federal, que pareciam não ter gostado nada de ver aquele cara de bermuda em cima de uma cadeira.
Logo chegaram dois, meio truculentos, me mandando descer da cadeira. Meio arrependido do meu grito anti-invisibilidade, desci, imaginando que seria escoltado para fora da sala.
Nisso, percebi que a massa se movimentava em minha direção e do nada, vi aquela cara barbuda a um metro de mim, me estendendo a mão. E agora ?
- Boa sorte para nós.
Foi o que eu disse. Foi o que saiu na hora.
Ele sorriu, bateu no meu ombro e com aquela voz que todos conhecem e muitas imitam me disse:
- Deixa comigo, companheiro.
E se foi quase arrastado pela segurança.
No outro dia, no suplemento de eleições de “O Globo” estava lá minha foto, apertando a mão do cara. E a legenda era : “ Candidato Lula cumprimenta eleitor antes do debate”
Eleitor. Típica expressão de invisibilidade.
Mas eu , vendo a foto, tive certeza que ao menos , na noite anterior, não tinha sido invisível. Por segundos, fiz parte da história. Fui sujeito ativo de um pedacinho muito pedacinho. Mas fui.
Três dias depois, Lula se elegeria Presidente do Brasil.
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Acho que as pessoas nasceram para brilhar. Esse dia me deu esses ensinamentos. Porque o porteiro “ João Ninguém” não quis ser invisível e foi na mesa do bar nos cumprimentar. E eu também me dei um bom exemplo, gritando em cima de uma cadeira. É bom quando a gente mesmo se dá exemplos.
Ah, e pensando bem, o maior exemplo de todos: Um nordestino com 13 irmãos, que fugiu da fome e da invisibilidade e veio ser Presidente do Brasil. Esse pegou pesado quando resolveu não ser invisível.
Paz.
Jacques, primavera (escaldante ) de 2006.

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